Finalmente pus meus pés em Varanasi, cidade indiana conhecida por ser a ‘Cidade dos Mortos’, e também um dos lugares que mais mexem com o imaginário de viajantes que por aqui passam. O lugar recebe esse título mórbido por abrigar alguns dos maiores crematórios a céu aberto do mundo,

localizados logo à beira do Rio Ganges. De acordo com o hinduísmo, a libertação da alma após a morte acontece com o equilíbrio do karma, nossa balança espiritual na Terra. Outra maneira de se libertar é deixar seus restos mortais descansarem nas correntes do rio Ganges, que é a materialização de Ganga, deusa da pureza e do perdão, é uma maneira de atingir o Moksha, e libertar a alma do fiél do próximo ciclo de reencarnações.

Cheguei à cidade, e no meu primeiro dia eu resolvi passear pela orla do Rio Ganges e conhecer os arredores. É justamente aí que eu vejo, pelo menos 6o crianças enfileiradas, deitadas, cobertas por panos vermelhos. Na hora eu arregalei os olhos, porque não imaginei que as cerimônias funerárias fossem tão explícitas. Um moço estava sentado em uma mureta ao lado de onde eu estava parado, eu me virei pra ele e perguntei: “Eles estão…?”, e o moço respondeu “Estão o que?”, e eu repeti, “Eles estão…? Você sabe”. E fiz sinal riscando a garganta com o dedo, dramatizando um pouco, pois as palavras não saíam da minha boca.

Ele entendeu, e respondeu no maior entusiasmo: “Quê? Nãaaao, são só os alunos da escola de monges fazendo yoga matinal!”.

Eu fiquei extremamente confuso, mas 1 minuto depois as crianças se levantaram e voltaram para a sala de aula.

Aquela situação me tirou algumas risadas, e refletia perfeitamente tudo o que Varanasi representava – uma grande contradição. As margens do Rio Ganges, onde milhares de pessoas proferem ‘adeus’ todos os dias à seus entes queridos, também é uma demonstração muito sólida de vulnerabilidade, troca, e sentimento. Mesmo dentro da crença de que a partida de uma pessoa amada naquele lugar signifique a libertação de sua alma, os sentimentos mundanos de quem fica não se desvencilham facilmente da matéria. Ainda há saudade, ainda há choro, ainda há apego. Por mais que tentemos criar mil maneiras de amenizar a dor do luto, e homenagear a vida da melhor maneira possível, a perda ainda nos faz vulneráveis, e divindade nenhuma tem a solução para um coração partido.

Independente da crença, a Índia, e especialmente Varanasi, são lugares muito carregados de fé. Tive minha própria espiritualidade aflorada e desfiada de maneiras completamente inusitadas. Por mais que tudo pareça extremamente caótico, e haja um milhão de coisas acontecendo à volta, a Cidade dos Mortos oferece a oportunidade única de percorrer e aprender com diversos ensinamentos, de diferentes partes e vivências de uma vida, seja trocando com fiéis à beira do rio, ou tomando chá com um Brahmin em um templo de Shiva, a cidade tem diversas maneiras de mexer com corações que a visitam em busca de cada vez mais perguntas, e não respostas.

A Índia é enorme, e extremamente plural, mas Varanasi é um dos retratos mais fiéis da Índia que imaginamos fora dela mesma. Apesar de estereótipos serem muitas vezes negativos, nesse caso diversos deles são verdades. O que não as faz características ruins, apenas diferentes. É justamente esse julgamento pré-moldado de que tudo que foge do padrões ditados pelo Ocidente, nos quais eu fui criado, que envenena o senso de aceitação humano. Você pode chamar Varanasi do que quiser, “feia, caótica, insalubre”. Eu a chamo de vibrante, estimulante, além de um perfeito exemplo de como nossas necessidades primárias antecedem nossas respectivas culturas, e nos aproximam enquanto indivíduos.

Fiz essa viagem de 2 meses pela Índia depois de mais de 4 anos viajando pelo mundo. Após de ter visitado diversos lugares inusitados, achei que nada mais pudesse me surpreender tanto. Felizmente, eu estava completamente errado.

 

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